quinta-feira, 23 de dezembro de 1999

Gazeta Mercantil/ Uma refeição inesquecível - 23/12/1999

Mistérios de um aniversário no Cairo
*Heloisa Bacellar
A vontade de ir ao Cairo surgiu em 1995, quando meu maridom minha filha, então com 4 anos, e eu estávamos morando em Paris. Durante aquele ano, fiz os cursos de cuisine e pâtisserie no "Le Cordon Bleu". Meu marido, que é historiador, fazia um trabalho no Arquivo Nacional e Isabel freqentava a escola. Ela ia ao Louvre quase uma vez por semana pois estava apaixonada por múmias, prâmides e faraós. Este mundo fascinante havia se tornado uma fixação em sua cabecinha. Por isso, quando, dois anos depois, de volta ao Brasil, perguntei-he qual país gostaria de conhecer, ela respondeu: Egito. Programei então uma viagem de 20 dias para lá.
Chegamos ao Cairo no dia 3 de outubro de 1997. Como só tínhamos uma noite na cidade, pois no dia seguinte iríamos para Luxor e só na volta passaríamos alguns dias na capital, optamos pela hospedagem num hotel perto do aeroporto. Um detalhe: era meu aniversário.
Apesar de exausta com uma viagem longa, eu sonhava com aquela cidade, e pedi ao guia Ahmed que montasse um programa especial.
Queria ver as pirâmides e comemorar num restaurante bem simpático e gostoso, mas onde pudesse ir, assim, vestida de "qualquer jeito". Ahmed escolheu uma mesa num local bem popular, realmente egípcio e bem ao lado das pirâmides.
O caminho parecia eterno. Ao cair da noite, com um céu já bem estrelado, cruzamos o Nilo, passamos ao lado de mesquitas e de um mercado. De repente, avistamos a esfinge e as pirâmides. Isabel nem piscava. Descemos do carro.
Chegamos. Não podia imaginar o que vinha pela frente: um jantar dos sonhos. Logo na entrada veio a primeira emoção: duas mulheres muçulmanas, vestidas de preto dos pés à cabeça, com o rosto todo coberto, moldavam e assavam pão pitta em um lindo forno a lenha redondo.
Rodavam os pães como uma dança, algo hipnotizante. O cheiro de pão quente era maravilhoso, inebriava, impregnava o ambiente. O restaurante era muito simples, informal, frequentado só por egípcios. De turistas, só mesmo nós. E as pirâmides? Da janela, eu as via e podia sonhar mais um pouco. As paredes do salão eram cobertas por azulejos brancos, os grarçons eram super simpáticos, tentavam puxar conversa a todo custo, e Ahmed, o nosso guia, ajudava. Meu árabe ainda estava bem precário, só sabia cumprimentar e contar até dez.
Começo a festa. Primeiro chegou uma cesta cheia de pão pitta quentíssimo, pelando mesmo. Em seguida vieram muitas tigelinhas, com tudo o que se possa imaginar, um ritual chamado mezze nos países árabes: coalhada seca, babaghanuj, hommus, quibes pequeninihos, falafel, tabule, saladas de folhas verdes, pepinos, lentilha, além de coisas que eu nem me lembro bem ou não sei o nome. Tudo estava fresquíssimo e delicioso. Comia sem parar, enquanto sentia aromas inspradores e ouvia as histórias de Ahmed, que já era um amigo.
Depois da primeira etapa, chegou um cabrito inesquecível, assado em pedaços pequenos, que e desmanchavam na boca, acompamhado de um molho de iogurte, folhas de hortelã, coentro e alho. Ao lado, ainda havia, posso me recodar direitinho, uma tigela com uma sopa de favas e ervas frescas e outra com um arroz feito com amêndoas, canela e tâmaras. Tudo era maravilhoso, perfumado. Comida dos deuses.
Quando eu achava que tudo havia terminado, apagaram-se as luzes do restaurante. Fiquei aflita por alguns segundos. Mas comecei a escutar uma música e aí entendi. Os garçons entraram no salão cantando parabéns em árabe. Afinal, já tinha me esquecido, era meu aniversário. Foi lindo. As velas estavam espetadas sobre um bolo feito de iogurte e amêndoas e coberto com uma caldas de mel e limão, dá prá imaginar?
Como se não bastasse, ainda vieram uma bandeja, cheia de doces secos com muitas amêndoas, pistaches, nozes, mel e perfumados com água de flor de laranjeira, e taças com creme gelado de tâmaras e mel.
Apesar dos pratos, na maioria, serem velhos conhecidos no Brasil, o fato é que, naquele lugar e naquele momento, tiveram um colorido, um saborr e um perfume muito especiais. Foi tudo mágico, um jeito maravilhoso de começar a conhecer o Cairo, um lugar cheio de riquezas e mistérios e que recente a especiarias. Hoje Isabel tem quase 9 anos e já ganhou um irmã, Ana. Espero um dia possamos voltar e desvendar outros mistérios.
*Advogada e chef de cuisine e pâtisserie pelo "Le Cordon Bleu" de Paris. Sócia da Escola de Culinária "Atelier Gourmand" (Rua Bela Cintra, 1783 -São Paulo tel: (11) 3060-9547.

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